sábado, 19 de dezembro de 2009

Encontros e Despedidas: histórias de ferrovias e ferroviários de Minas

Entrevista com Andréa Casa Nova Maia


Argvmentvm Editora Por que a escolha da expressão “Encontros e Despedidas” para o título deste livro?

Andréa Casa Nova Maia Me lembrei desta música de Milton Nascimento e Fernando Brant sobre os encontros e as despedidas que acontecem na estação... Era menos conhecida na época do que Ponta de Areia, que também fala de outra ferrovia, que levava Minas ao porto, ao mar... Caminho de Ferro que mandaram arrancar (sobre a Bahia-Minas) e que começou a ser construído ainda na época de Mauá, em fins do Império. No meu caso, Encontros e Despedidas fala também do encontro com os ferroviários de Minas e suas lutas por melhores condições de vida e suas despedidas no sentido do grande “adeus” que todos nós tivemos que dar aos trens de passageiros e a muitos caminhos, cujos trilhos também foram arrancados.

AE No caso deste livro, existiu a opção por algum enfoque, em especial, para tratar da história de ferrovias e ferroviários de Minas?

ACNM Sim, optei por fazer um estudo de caso da Estrada de Ferro Oeste de Minas, que depois virou a Rede Mineira de Viação, até se juntar à RFFA, em 1957. Particularmente, trabalhei com a cidade de Divinópolis e seu entorno, pois se tratava, no período que eu trabalhei, do principal entroncamento ferroviário da RMV, local das oficinas e cuja participação política se desdobrou em grandes mobilizações, particularmente as greves de 1948 e 1952.

AE É possível estabelecer diferenças administrativas na Rede Mineira de Viação e, ao mesmo tempo, interligá-las aos poderes públicos?

ACNM Sim, no caso na Rede Mineira, podemos perceber claramente uma mudança de rumos quando a administração passou das mãos de Demerval Pimenta, que administrou a RMV durante o governo de Benedito Valadares, ou seja, durante o governo Vargas, para as suas sucedâneas, já durante o governo de Milton Campos e JK.

AE No que se refere ao transporte ferroviário, o que se pode destacar na relação entre políticas públicas e direito dos trabalhadores?

ACNM Desde sua construção até a atualidade, a história da ferrovia brasileira foi marcada por idas e vindas entre o público e o privado. Começa com a iniciativa de capitais privados, mas acaba por ser encampada pela União, que melhorava as condições de trabalho, melhorava os salários, dentre outras questões, mas, em seguida, ela era novamente desestatizada, ou passava novamente para as mãos do capital privado, algumas vezes, para empresas multinacionais. Sendo assim, durante os governos cujas políticas priorizaram o bem-estar social e a inclusão dos trabalhadores no jogo político, como no caso da Era Vargas, a relação era positiva. Porém, no caso em que os governos eram liberais ou, para falar mais recentemente, neoliberais, essa relação não se deu de forma tranquila. Pelo contrário. Ocorreram várias manifestações que demonstram o quanto os direitos dos trabalhadores foram atingidos pela própria política de privatização/desestatização, quando muitos ferroviários perderam seus empregos e/ou foram “terceirizados”, passando a ganhar menos e sem direitos trabalhistas, pois geralmente passaram a prestar serviços como autônomos, sem vínculos empregatícios formais.

AE Quais foram as principais estratégias adotadas pelos ferroviários para lutarem por seus direitos?

ACNM As greves.

AE Em que conjuntura político-econômica ocorreu a decisão de desativar o transporte ferroviário de passageiros em Minas?

ACNM O processo teve início quando da implantação da indústria automobilística, como já é corrente no senso comum. Principalmente após a criação da Comissão Mista Brasil-Estados Unidos, que procurou mapear os chamados “ramais antieconômicos”. Além disso, ao invés das rodovias tornarem-se vias complementares ao sistema de transporte ferroviário, elas foram construídas, em sua maioria, paralelamente às vias férreas, diferente do ocorrido nas principais potências mundiais.

AE Quais foram as principais implicações socioeconômicas do desmonte da malha ferroviária mineira?

ACNM Talvez a principal... e aí já não é minha área de conhecimento, já que não sou economista... tenha sido o encarecimento do sistema de transporte público. Principalmente quando pensamos a extinção dos trens de passageiros e/ou na transformação desse patrimônio em atrativo turístico e não transporte de trabalhadores. Já que o trem turístico é muito mais caro do que costumava ser uma viagem de trem antigamente.

AE Em sua opinião, qual é o significado de registrar a memória da ferrovia e dos ferroviários em Minas?

ACNM É importante o registro da memória e do patrimônio não só das ferrovias e dos ferroviários de Minas, mas de todos os ferroviários do Brasil, para que, aprendendo com os erros do passado e com as lutas desses trabalhadores por direitos, tenhamos condições de reconstruir nossa malha ferroviária e resistir ao processo de extinção de uma das categorias mais combativas da história social do trabalho no Brasil. A grande imagem que nos vem à mente ou a palavra que volta e meia surge na fala de um mineiro é o trem. Signo. Identidade. Sempre quando penso em Minas, me vem logo a imagem de uma Maria Fumaça passando sobre uma montanha... Não podemos esquecer nossas raízes... É através da preservação dessa memória que poderemos reconstruir um país que volte a ter trens cada vez mais ágeis, não só para transportar nossas riquezas até os portos, mas também para fazer nossas deliciosas viagens por tão vasto país, preservando, se possível, nossa soberania enquanto nação cada vez mais desenvolvida e capaz de gerar e redistribuir riquezas, minimizando os terríveis efeitos da desigualdade social que é uma das mais terríveis marcas de nossa condição de ex-colonizados.■

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Ferrovia, Sociedade e Cultura: 1850-1930

Entrevista com Pablo Luiz de Oliveira Lima


Argvmentvm Editora Por que a escolha da ferrovia como tema central deste livro?

Pablo Luiz de Oliveira Lima A história ferroviária é um tema de interesse para mim por motivos pessoais e acadêmicos. Pessoais, porque sou de uma pequena cidade que veio a existir devido à construção da estação de Urubu, na Estrada de Ferro Goiás, em 1913. Com a falência desta empresa ferroviária, em 1920, ela foi leiloada e adquirida pela Estrada de Ferro Oeste de Minas, empresa estatal. Neste contexto, a estação de Urubu recebeu um novo e mais poético nome: Campos Altos. Em torno da estação, cresceu um povoado com a migração de habitantes das regiões rurais mais próximas, como meus avós, e em 1944 foi criado o município. Ainda hoje, a mesma ferrovia atravessa a cidade, travessia que completará 100 anos em breve. No entanto, a atual empresa concessionária não transporta passageiros, situação que vem desde o início dos anos 1980.

O interesse acadêmico surgiu durante o curso de graduação em história, pois percebi a pequena produção de pesquisa histórica sobre o assunto em Minas Gerais. Assim, fiz meu mestrado sobre o tema da história ferroviária no Programa de Pós-Graduação em História da UFMG, entre 2001 e 2003. Meu livro é uma versão levemente modificada da dissertação.

AE O senso comum, geralmente, associa o termo ferrovia a aspectos econômicos; no entanto, sua abordagem privilegia sociedade e cultura. Quais são as implicações desse tipo de análise?

PLOL A economia não está dissociada da sociedade e da cultura. Talvez um dos principais problemas da ciência econômica seja a negligência em relação a questões culturais e sociais que são afetadas ou influenciadas pela economia. Da mesma maneira, os estudos sobre fenômenos culturais e sociais não podem deixar de considerar as dimensões econômicas da realidade. Acredito que seja hora de os historiadores que atuam no campo da história cultural e social, assim como de os economistas que se interessam pela cultura, propor o conceito de “cultura econômica”, no mesmo sentido em que os historiadores da política trabalham com o conceito de “culturas políticas”. A cultura econômica é o conjunto de valores culturais que sustentam e justificam as práticas econômicas. No século XIX, havia uma cultura econômica que acreditava na industrialização da produção e circulação de mercadorias como o caminho inevitável para se alcançar o desenvolvimento. Era uma cultura que se guiava pelo sentimento evolucionista, que na linguagem econômica se traduzia em uma tensão entre o atraso e o progresso. Até o século XVIII não havia isto. O Brasil só ficou “atrasado” após a Revolução Industrial, quando passou a ser comparado com as nações industrializadas da época. E nossos governantes, desde então, buscam a “ordem e progresso”.

AE Quais foram suas fontes de pesquisa?

PLOL Para compreender o ambiente cultural do século XIX pesquisei em obras de memória de estrangeiros e brasileiros que deixaram registros sobre os transportes no Brasil, antes e depois da ferrovia. Para acompanhar os debates entre as autoridades políticas, analisei a memória oficial da província e do estado de Minas Gerais contida nos discursos dos chefes do executivo ao poder legislativo. E, para alcançar a dimensão do trabalho, busquei fontes diversas que representam os trabalhadores em seu dia a dia, como matérias de jornais da época, fotografias, relatórios das empresas e depoimentos de ex-ferroviários entrevistados durante o processo de pesquisa.

AE É possível delinear os períodos de “início, auge e declínio” das ferrovias no Brasil?

PLOL Sim. Entre 1835 e 1854, foram realizados os primeiros projetos e aprovadas as primeiras leis sobre ferrovias no Brasil. Mas a primeira empresa foi inaugurada pelo Barão de Mauá em 1854. Desse ano até 1930, o Brasil viveu o período de construção da maior parte da nossa malha ferroviária dentro de uma cultura liberal, o que significa que não houve um planejamento eficiente, levando muitas empresas à falência e à estatização. Com o governo Vargas, a partir de 1930, a malha ferroviária foi estatizada e centralizada em redes ferroviárias estaduais. O período entre os anos 1930 e 1960 marcou o auge do transporte ferroviário no Brasil. Nesse período, a ferrovia era o principal meio de transporte de pessoas e mercadorias. Em 1958, no governo de Juscelino Kubitscheck, foi criada a Rede Ferroviária Federal S.A., centralizando toda a malha nacional. Neste momento a malha nacional contava com cerca de 38 mil quilômetros de linhas férreas. Mas, após o Golpe Militar de 1964, que também foi apoiado por setores civis da sociedade, o transporte ferroviário foi colocado em segundo plano em relação ao transporte rodoviário. Durante a ditadura militar, nossa malha ferroviária foi abandonada ao ponto de retroceder à extensão da década de 1920 em 1983, ou seja, a cerca de 25 mil quilômetros de extensão. Em 1996 o setor ferroviário foi privatizado, voltando à era liberal. A este retorno ao liberalismo e à ausência de planejamento estatal denominamos neoliberalismo. Hoje estamos vivendo um momento de estagnação, o que é melhor que a retração da ditadura militar, mas sem avanços significativos e ainda sem o retorno do transporte de passageiros. Considero absurdo o fato de os cidadãos de hoje não poderem optar pela ferrovia para viajarem entre as cidades do país, estando limitados às rodovias ou ao transporte aéreo. Que capitalismo é este em que vivemos, que retira opções dos consumidores? Por causa desta inquietação decidi buscar conhecer melhor esta história, que é a história do capitalismo brasileiro, muito diferente do capitalismo da Europa ocidental e da América anglófona.

AE Quais foram as principais concepções acerca do papel da ferrovia no Brasil?

PLOL No século XIX havia um grande debate sobre o lugar da ferrovia no país. Havia aqueles que defendiam a ferrovia como um instrumento necessário ao progresso, mas isto não era unanimidade. Muitos duvidavam. Entre os que acreditavam na ferrovia, havia pelo menos dois grupos: um que defendia a ferrovia com o meio de ligação entre cidades já existentes e economicamente importantes, e outro que defendia a ferrovia como meio de integrar regiões sertanejas, desabitadas ou pouco habitadas e com pouca atividade econômica, fazendo com que se ligassem aos grandes centros urbanos e ativando, assim, as economias regionais.

AE A Estrada de Ferro Oeste de Minas e Estrada de Ferro Goiás modificaram as condições socioeconômicas das regiões em que foram instaladas?

PLOL Sim, para o bem e para o mal. Facilitaram e dinamizaram o transporte e a comunicação entre as regiões ligadas pelo trem. Contribuíram muito para o escoamento da produção cafeeira, estimulando o aumento da produção. Mas desagregaram os sistemas de transportes tradicionais, como o fluvial e as rotas de carros de bois, inundando os sertões com produtos industrializados e levando as pequenas indústrias, como a tecelagem tradicional, à falência. Criaram-se também cidades-fantasmas, cujas populações foram atraídas por estações ferroviárias, como foi o caso dos moradores de São Jerônimo dos Poções, que migraram quase totalmente para Campos Altos, a 18 quilômetros, porque ali passava a ferrovia.

AE O que podemos saber a respeito da ação dos ferroviários na implantação do desse sistema de transporte através das fontes que analisou?

PLOL O principal é que havia diversas categorias de ferroviários. As companhias ferroviárias inauguraram a hierarquia administrativa moderna no Brasil. Havia os engenheiros e diretores das empresas, graduados em engenharia no Brasil ou exterior, homens altamente qualificados e com ligações diretas com a elite econômica e política. Havia os funcionários mais qualificados, engenheiros práticos, agentes de estações, maquinistas, que figuraram entre os primeiros trabalhadores necessariamente livres em um país escravista. E havia todos os trabalhadores braçais, pedreiros, carregadores, entre os quais muitos eram escravos, e cuja história foi pouco registrada pelos documentos que encontrei.

AE Você pode comentar a seguinte passagem do livro: “... o trem de ferro, em sua passagem pelo Brasil, foi levado a atravessar a fronteira entre o essencial e o efêmero, passando de símbolo do futuro a sombra do passado.”?

PLOL Eu quis dizer que a ferrovia já foi o que havia de mais moderno no cenário econômico e cultural do país, mas hoje a situação é diferente. Grande parte do transporte de mercadorias in natura, como grãos e minerais, continua a ser realizado por ferrovias. Mas não há mais transporte de passageiros, com exceção de alguns trechos administrados pela Vale. O Brasil possui a 11a malha ferroviária mais extensa do mundo, mas ela é menor que as da Argentina, França, Alemanha, Reino Unido, Estados Unidos, etc. Hoje não há mais uma associação entre ferrovia e modernidade no imaginário social brasileiro, apesar de recorrentes discursos de políticos sobre a “volta da ferrovia” ou as vantagens do “trem bala”. A população ficou só com a memória e com um grande número de estações desativadas que assombram cidades por onde os trens um dia carregaram pessoas, sentimentos, amores, saudades...

AE Podemos falar em um “patrimônio ferroviário” no Brasil hoje? Como ele se apresenta?

PLOL Sim. Em meu livro fiz uma análise sobre a situação do patrimônio cultural ferroviário em Minas, que oscila entre casos de abandono e de preservação. O patrimônio ferroviário é composto por edificações (estações, casas de mestres de linha, edifícios administrativos, vilas operárias, oficinas, rotundas) e por um grande volume de documentos textuais, iconográficos e fotográficos, espalhados pelo país. Há ainda uma multidão de ex-ferroviários, muitos que foram aposentados compulsoriamente durante a privatização do setor em 1996, e que têm o principal patrimônio: a memória viva da era do trem.

AE A ferrovia pode ser uma alternativa para o sistema de transporte no Brasil hoje? Quais seriam as medidas necessárias para que ele se efetivasse?

PLOL Eu, não apenas como pesquisador, mas como cidadão, acredito que sim. E creio também que a principal medida seria fazer algo que nunca foi feito antes no Brasil, neste setor: consultar a sociedade sobre o que ela pensa em relação às ferrovias. Se a sociedade brasileira for consultada pelo Estado, poderemos saber o que ela pensa. E, se a maioria da população quiser a revitalização do transporte ferroviário e o retorno do transporte de passageiros, isto deveria ocorrer. Afinal de contas, não diz a Constituição de 1988 que todo o poder emana do povo? Então, por que não consultar a população sobre este e muitos outros assuntos que afetam a vida da sociedade como um todo? E por que não realizar obras que atendam diretamente às demandas reais da população? Talvez meu livro ajude um pouco a levantar estas questões sobre a cultura econômica do nosso tempo presente.■