segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

A Impostura do Mestre

Entrevista com Marcelo Ricardo Pereira


Argvmentvm Editora Poderíamos dizer que a educação está passando por uma crise ideológica? Quais são seus motivos principais?

Marcelo Ricardo Pereira Não diria propriamente uma “crise ideológica”, mas uma crise decorrente do deslocamento dos valores tradicionais. Tais valores nunca foram tão interrogados, e a educação escolarizada, uma vez pautada na tradição, também vem sendo severamente posta em questão. Isso surge de todos os lados: dos alunos, que não se identificam com uma escola até então destinada a poucos; dos professores, que se acham lançados a sua própria sorte; das famílias, que exigem da escola contemporânea uma adequada formação moral para seus filhos; dos gestores, que precisam equacionar essas e outras tantas demandas.

AE É exagerado dizer que atualmente existe uma fobia de lecionar? Qual sua opinião?

MRP Sim. Não creio que tenhamos hoje uma fobia de lecionar. Nunca formamos tantos professores e nunca tivemos tanta procura pela profissão, mas também nunca observamos tantos modos de padecimento entre aqueles que a exercitam. Afora artigos e reportagens alarmistas em relação ao assunto, sabemos que muitos professores – digo isso no livro – ressentem do desgaste ostensivo de seu ofício, sucumbem à rotina ou ao desinteresse indisfarçado de seus alunos e não conseguem inventar saídas mais ou menos satisfatórias para tal. Logo, de uma maneira ou outra, tendem a se manifestar, mas não necessariamente sob a forma de fobia.

AE Como se configura a expectativa dos alunos em relação a seus mestres?

MRP Ora, o que se espera de um mestre? Que ele seja um guia, que abra a picada, mostre caminhos, que dê o primeiro passo para que o aluno possa dar o seguinte. O mestre não é só o professor, mas todo aquele que conduz o outro ou, como digo no livro, todo aquele que governa o corpo do outro. Então, o pai, a mãe, o pastor, o chefe da gangue, o governante, assim com o professor são todos mestres que precisam dar o primeiro passo. Isso não quer dizer que o mestre tenha que saber tudo, que tenha que saber o caminho certo, mas ele precisa achar que sabe. Ele precisa servir de referência para que seu seguidor faça suas escolhas, mesmo que sejam contrárias àquelas que o mestre determina.

AE Nossos professores carecem de métodos e didáticas mais eficientes?

MRP Não. Eles já os têm em demasia. Há bem pouco tempo o circuito educacional acreditou que a racionalidade técnica, uma vez aprimorada, ofertaria ao docente a pedagogia sem aresta, a psicologia pontual, o método preciso. Mas não é bem assim. Precisamos auxiliar professores a atuar em situações de incerteza e descontinuidades, a dar respostas mais ou menos rápidas mediante tais situações, a lidar com a apatia do alunado sem se tornar também apático e a entender formas do “mal-estar na civilização” que hoje assola igualmente o campo pedagógico.

AE Qual a sua opinião sobre o papel do professor na sociedade atual?

MRP Gosto muito de uma frase de Deleuze que, a meu ver, responde bem a pergunta: “nossos mestres não são apenas os professores públicos, ainda que tenhamos uma grande necessidade deles; nossos mestres são aqueles que nos tocam com uma novidade radical, sabem inventar uma técnica artística ou literária e encontrar maneiras de pensar que correspondam à nossa modernidade, quer dizer, tanto às nossas dificuldades como aos nossos entusiasmos difusos”.

AE Você acredita que exista uma vocação para lecionar?

MRP Não nascemos professores, mas nos tornamos. Ao longo de nossa vida acumulamos saberes, experiências, interesses e relações que podem determinar nossos destinos. A profissão professor, neste sentido, não é diferente de outras. Ela é construída palmo a palmo a partir das impressões que a vida nos confere. Então, prefiro pensar que não descobrimos em nós uma vocação para o magistério, bem à maneira essencialista; mas que construímos nossa vocação, que a aprendemos, a experimentamos. Talvez a ideia de vocação tenha sido herdada da tradição religiosa ou missionária que originou a profissão e ainda está intimamente ligada ao seu exercício. Mas há nela uma especificidade que gostaria de assinalar: desde cedo, desde tenra idade, nós experimentamos o magistério como alunos. A maioria das pessoas, já na infância, e por toda a vida, tem contato com diversos professores, diversos estilos, diversas formas de dar aulas. E mais: é uma profissão que fascina, pois ela sempre é associada com alguma forma de poder, de conduzir pessoas. Para muitos de nós, foi a primeira vez que, fora de casa, e de maneira sistemática, experimentamos esse poder e esse exercício. Então, devo reconhecer, o magistério, em muitos aspectos, é uma profissão para a qual se forma antes mesmo de um curso ou de uma graduação, antes de sermos diplomados. É uma profissão muito íntima, que perpassa toda a nossa vida.

AE Como os professores podem realizar suas funções sem se frustrarem?

MRP Sabendo que um mestre só o é provisoriamente, como dito em A impostura do mestre. Isso quer dizer que ele deve atuar mais pontualmente, mais transitoriamente, e não como aquele que detém o saber eterno sobre as coisas. Há um trecho do livro em que tento responder a isso: “Aquele que ensina, que exerce a função de mestre, deve salvar nossa capacidade humana de pensar, de produzir saberes, não tanto com base nas boas técnicas pedagógicas, que inflacionam mais frustrações do que conquistas, mas muito mais com base na sua experiência e arte de viver. A autoridade do mestre está não em se fazer como aquele que detém o saber categórico, o código inviolável de uma moral, mas como aquele que ativa o desejo de saber por também desejá-lo. Isso produz pensamento. De outro modo, se o mestre se põe como o grande sabedor, como o condutor de massas acéfalas, o que ele produz é o vazio do saber pelo silêncio do desejo”.

AE Como a psicanálise pode contribuir para uma melhoria no setor educacional?

MRP Exercendo o que chamo “atitude clínica”, ou seja, uma atitude de desconfiança ou suspeita, que intervém, faz falar e possibilita mudanças. Isso só é possível se admitirmos a própria finitude da ordem pedagógica. A psicanálise quando aplicada à educação pode levá-la a entender a fragilidade do processo civilizatório que tanto defende; a entender também o caráter insuficiente de seus programas ou o quanto não leva em conta o sujeito, as singularidades em nome de um universalismo racional e fictício. Sabemos desde Freud que a natureza pulsional do homem é virtualmente ineducável: seus desejos, sexualidade, fantasias, infantilizações, agressividade, fanatismos, paixões. Ora, quem sabe a educação possa parar de insistir em deixar essas manifestações à margem de seus ideais? A atitude clínica vem nessa direção: fazer falar aquilo que parece alijado do “programa” educacional. Mas devemos assinalar: o destino de quem pretende fazer uso da psicanálise não é outro senão o de estar na oposição. Não é um lugar confortável, decerto, mas talvez seja o único que permite espreitar melhor o humano demasiadamente humano – como diria Nietzsche.

AE Como a discussão dos quatro discursos considerados em seu livro – “discurso do mestre”, “discurso da universidade”, “discurso da histérica” e “discurso do analista” – podem auxiliar no exercício da profissão do professor?

MRP Sob a forma de algoritmos, essa teoria, originalmente, foi introduzida de forma genial por Lacan para explicar o laço social ou as formas como as pessoas se relacionam. Uma pessoa ao discursar a partir do lugar do mestre acredita que é o sabe-tudo, senhor das palavras e da lei a que todos devem submeter; o outro é visto como um mero escravo ou discípulo. Já ao discursar a partir do lugar da universidade, a pessoa acredita que é o intermediário entre o saber dos grandes autores, das enciclopédias, e aqueles aos quais julga não saberem nada, ou seja, a quem, conservadoramente, se deve transmitir o conhecimento dos grandes autores. Do lugar da histérica, a pessoa se torna lamurienta, queixosa; nada está bom, tudo é insuficiente; ela nunca se acha suficiente para o outro e, igualmente, nunca acha o outro suficiente para dar-lhe aquilo do qual tanto queixa. Porém, do lugar do analista (que não quer dizer exclusivamente do psicanalista), a pessoa se coloca num lugar provisório, de passagem, nem como sabe-tudo, nem como sabe-nada; é um lugar meio curinga e talvez fosse interessante que o professor pudesse ocupá-lo por alguns instantes.

É difícil sintetizar algo tão abrangente em rápidas palavras sem correr o risco de comprometê-lo, mas uma das coisas que assinalo no livro de maneira demorada é que o professor deve entender e operar os discursos a ponto de não se fixar em nenhum deles: não se fixar como mestre sabe-tudo, nem como mero porta-voz dos grandes autores, tampouco como queixoso. Talvez lhe seja possível “girar” os discursos e, por alguns momentos, exercer provisoriamente sua função de mestre. Ninguém consegue fixar-se nessa função o tempo todo. Então, no dia a dia, talvez seja possível numa mesma disciplina, no decorrer de um mesmo período letivo, se terem vários professores, cada um ministrando o saber com o qual mais se identifica, sobre o qual deseja transmitir e através do qual recupera contingentemente o seu próprio sentido de mestria.

AE Você pode comentar a seguinte passagem do livro: “Talvez com base nesse lugar intermediário entre fraqueza e força, entre nada e tudo saber, o mestre possa inscrever seu ato de ensinar sob a forma de um estilo.”?

MRP O princípio relacional da função de mestria a deixa sem um referencial muito estável. O fato é que há nela um caráter bastante circunstancial e contingente, pois quem a exerce sabe que tem de lidar cotidianamente com incertezas e subversões e, ao mesmo tempo, inventar saídas rápidas para isso. É uma função marcada por impasses, mas também por muitas descobertas: por uma arte, eu diria. A inventividade deveria ser o outro nome dessa função. Talvez, o mestre seja aquele que, de maneira irredutível, e de acordo com o seu estilo, pode admitir a contingência radical da experiência de ensinar. Sabe que sua experiência é singular e é nela que terá que escrever o seu nome.