segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

A Impostura do Mestre

Entrevista com Marcelo Ricardo Pereira


Argvmentvm Editora Poderíamos dizer que a educação está passando por uma crise ideológica? Quais são seus motivos principais?

Marcelo Ricardo Pereira Não diria propriamente uma “crise ideológica”, mas uma crise decorrente do deslocamento dos valores tradicionais. Tais valores nunca foram tão interrogados, e a educação escolarizada, uma vez pautada na tradição, também vem sendo severamente posta em questão. Isso surge de todos os lados: dos alunos, que não se identificam com uma escola até então destinada a poucos; dos professores, que se acham lançados a sua própria sorte; das famílias, que exigem da escola contemporânea uma adequada formação moral para seus filhos; dos gestores, que precisam equacionar essas e outras tantas demandas.

AE É exagerado dizer que atualmente existe uma fobia de lecionar? Qual sua opinião?

MRP Sim. Não creio que tenhamos hoje uma fobia de lecionar. Nunca formamos tantos professores e nunca tivemos tanta procura pela profissão, mas também nunca observamos tantos modos de padecimento entre aqueles que a exercitam. Afora artigos e reportagens alarmistas em relação ao assunto, sabemos que muitos professores – digo isso no livro – ressentem do desgaste ostensivo de seu ofício, sucumbem à rotina ou ao desinteresse indisfarçado de seus alunos e não conseguem inventar saídas mais ou menos satisfatórias para tal. Logo, de uma maneira ou outra, tendem a se manifestar, mas não necessariamente sob a forma de fobia.

AE Como se configura a expectativa dos alunos em relação a seus mestres?

MRP Ora, o que se espera de um mestre? Que ele seja um guia, que abra a picada, mostre caminhos, que dê o primeiro passo para que o aluno possa dar o seguinte. O mestre não é só o professor, mas todo aquele que conduz o outro ou, como digo no livro, todo aquele que governa o corpo do outro. Então, o pai, a mãe, o pastor, o chefe da gangue, o governante, assim com o professor são todos mestres que precisam dar o primeiro passo. Isso não quer dizer que o mestre tenha que saber tudo, que tenha que saber o caminho certo, mas ele precisa achar que sabe. Ele precisa servir de referência para que seu seguidor faça suas escolhas, mesmo que sejam contrárias àquelas que o mestre determina.

AE Nossos professores carecem de métodos e didáticas mais eficientes?

MRP Não. Eles já os têm em demasia. Há bem pouco tempo o circuito educacional acreditou que a racionalidade técnica, uma vez aprimorada, ofertaria ao docente a pedagogia sem aresta, a psicologia pontual, o método preciso. Mas não é bem assim. Precisamos auxiliar professores a atuar em situações de incerteza e descontinuidades, a dar respostas mais ou menos rápidas mediante tais situações, a lidar com a apatia do alunado sem se tornar também apático e a entender formas do “mal-estar na civilização” que hoje assola igualmente o campo pedagógico.

AE Qual a sua opinião sobre o papel do professor na sociedade atual?

MRP Gosto muito de uma frase de Deleuze que, a meu ver, responde bem a pergunta: “nossos mestres não são apenas os professores públicos, ainda que tenhamos uma grande necessidade deles; nossos mestres são aqueles que nos tocam com uma novidade radical, sabem inventar uma técnica artística ou literária e encontrar maneiras de pensar que correspondam à nossa modernidade, quer dizer, tanto às nossas dificuldades como aos nossos entusiasmos difusos”.

AE Você acredita que exista uma vocação para lecionar?

MRP Não nascemos professores, mas nos tornamos. Ao longo de nossa vida acumulamos saberes, experiências, interesses e relações que podem determinar nossos destinos. A profissão professor, neste sentido, não é diferente de outras. Ela é construída palmo a palmo a partir das impressões que a vida nos confere. Então, prefiro pensar que não descobrimos em nós uma vocação para o magistério, bem à maneira essencialista; mas que construímos nossa vocação, que a aprendemos, a experimentamos. Talvez a ideia de vocação tenha sido herdada da tradição religiosa ou missionária que originou a profissão e ainda está intimamente ligada ao seu exercício. Mas há nela uma especificidade que gostaria de assinalar: desde cedo, desde tenra idade, nós experimentamos o magistério como alunos. A maioria das pessoas, já na infância, e por toda a vida, tem contato com diversos professores, diversos estilos, diversas formas de dar aulas. E mais: é uma profissão que fascina, pois ela sempre é associada com alguma forma de poder, de conduzir pessoas. Para muitos de nós, foi a primeira vez que, fora de casa, e de maneira sistemática, experimentamos esse poder e esse exercício. Então, devo reconhecer, o magistério, em muitos aspectos, é uma profissão para a qual se forma antes mesmo de um curso ou de uma graduação, antes de sermos diplomados. É uma profissão muito íntima, que perpassa toda a nossa vida.

AE Como os professores podem realizar suas funções sem se frustrarem?

MRP Sabendo que um mestre só o é provisoriamente, como dito em A impostura do mestre. Isso quer dizer que ele deve atuar mais pontualmente, mais transitoriamente, e não como aquele que detém o saber eterno sobre as coisas. Há um trecho do livro em que tento responder a isso: “Aquele que ensina, que exerce a função de mestre, deve salvar nossa capacidade humana de pensar, de produzir saberes, não tanto com base nas boas técnicas pedagógicas, que inflacionam mais frustrações do que conquistas, mas muito mais com base na sua experiência e arte de viver. A autoridade do mestre está não em se fazer como aquele que detém o saber categórico, o código inviolável de uma moral, mas como aquele que ativa o desejo de saber por também desejá-lo. Isso produz pensamento. De outro modo, se o mestre se põe como o grande sabedor, como o condutor de massas acéfalas, o que ele produz é o vazio do saber pelo silêncio do desejo”.

AE Como a psicanálise pode contribuir para uma melhoria no setor educacional?

MRP Exercendo o que chamo “atitude clínica”, ou seja, uma atitude de desconfiança ou suspeita, que intervém, faz falar e possibilita mudanças. Isso só é possível se admitirmos a própria finitude da ordem pedagógica. A psicanálise quando aplicada à educação pode levá-la a entender a fragilidade do processo civilizatório que tanto defende; a entender também o caráter insuficiente de seus programas ou o quanto não leva em conta o sujeito, as singularidades em nome de um universalismo racional e fictício. Sabemos desde Freud que a natureza pulsional do homem é virtualmente ineducável: seus desejos, sexualidade, fantasias, infantilizações, agressividade, fanatismos, paixões. Ora, quem sabe a educação possa parar de insistir em deixar essas manifestações à margem de seus ideais? A atitude clínica vem nessa direção: fazer falar aquilo que parece alijado do “programa” educacional. Mas devemos assinalar: o destino de quem pretende fazer uso da psicanálise não é outro senão o de estar na oposição. Não é um lugar confortável, decerto, mas talvez seja o único que permite espreitar melhor o humano demasiadamente humano – como diria Nietzsche.

AE Como a discussão dos quatro discursos considerados em seu livro – “discurso do mestre”, “discurso da universidade”, “discurso da histérica” e “discurso do analista” – podem auxiliar no exercício da profissão do professor?

MRP Sob a forma de algoritmos, essa teoria, originalmente, foi introduzida de forma genial por Lacan para explicar o laço social ou as formas como as pessoas se relacionam. Uma pessoa ao discursar a partir do lugar do mestre acredita que é o sabe-tudo, senhor das palavras e da lei a que todos devem submeter; o outro é visto como um mero escravo ou discípulo. Já ao discursar a partir do lugar da universidade, a pessoa acredita que é o intermediário entre o saber dos grandes autores, das enciclopédias, e aqueles aos quais julga não saberem nada, ou seja, a quem, conservadoramente, se deve transmitir o conhecimento dos grandes autores. Do lugar da histérica, a pessoa se torna lamurienta, queixosa; nada está bom, tudo é insuficiente; ela nunca se acha suficiente para o outro e, igualmente, nunca acha o outro suficiente para dar-lhe aquilo do qual tanto queixa. Porém, do lugar do analista (que não quer dizer exclusivamente do psicanalista), a pessoa se coloca num lugar provisório, de passagem, nem como sabe-tudo, nem como sabe-nada; é um lugar meio curinga e talvez fosse interessante que o professor pudesse ocupá-lo por alguns instantes.

É difícil sintetizar algo tão abrangente em rápidas palavras sem correr o risco de comprometê-lo, mas uma das coisas que assinalo no livro de maneira demorada é que o professor deve entender e operar os discursos a ponto de não se fixar em nenhum deles: não se fixar como mestre sabe-tudo, nem como mero porta-voz dos grandes autores, tampouco como queixoso. Talvez lhe seja possível “girar” os discursos e, por alguns momentos, exercer provisoriamente sua função de mestre. Ninguém consegue fixar-se nessa função o tempo todo. Então, no dia a dia, talvez seja possível numa mesma disciplina, no decorrer de um mesmo período letivo, se terem vários professores, cada um ministrando o saber com o qual mais se identifica, sobre o qual deseja transmitir e através do qual recupera contingentemente o seu próprio sentido de mestria.

AE Você pode comentar a seguinte passagem do livro: “Talvez com base nesse lugar intermediário entre fraqueza e força, entre nada e tudo saber, o mestre possa inscrever seu ato de ensinar sob a forma de um estilo.”?

MRP O princípio relacional da função de mestria a deixa sem um referencial muito estável. O fato é que há nela um caráter bastante circunstancial e contingente, pois quem a exerce sabe que tem de lidar cotidianamente com incertezas e subversões e, ao mesmo tempo, inventar saídas rápidas para isso. É uma função marcada por impasses, mas também por muitas descobertas: por uma arte, eu diria. A inventividade deveria ser o outro nome dessa função. Talvez, o mestre seja aquele que, de maneira irredutível, e de acordo com o seu estilo, pode admitir a contingência radical da experiência de ensinar. Sabe que sua experiência é singular e é nela que terá que escrever o seu nome.

sábado, 19 de dezembro de 2009

Encontros e Despedidas: histórias de ferrovias e ferroviários de Minas

Entrevista com Andréa Casa Nova Maia


Argvmentvm Editora Por que a escolha da expressão “Encontros e Despedidas” para o título deste livro?

Andréa Casa Nova Maia Me lembrei desta música de Milton Nascimento e Fernando Brant sobre os encontros e as despedidas que acontecem na estação... Era menos conhecida na época do que Ponta de Areia, que também fala de outra ferrovia, que levava Minas ao porto, ao mar... Caminho de Ferro que mandaram arrancar (sobre a Bahia-Minas) e que começou a ser construído ainda na época de Mauá, em fins do Império. No meu caso, Encontros e Despedidas fala também do encontro com os ferroviários de Minas e suas lutas por melhores condições de vida e suas despedidas no sentido do grande “adeus” que todos nós tivemos que dar aos trens de passageiros e a muitos caminhos, cujos trilhos também foram arrancados.

AE No caso deste livro, existiu a opção por algum enfoque, em especial, para tratar da história de ferrovias e ferroviários de Minas?

ACNM Sim, optei por fazer um estudo de caso da Estrada de Ferro Oeste de Minas, que depois virou a Rede Mineira de Viação, até se juntar à RFFA, em 1957. Particularmente, trabalhei com a cidade de Divinópolis e seu entorno, pois se tratava, no período que eu trabalhei, do principal entroncamento ferroviário da RMV, local das oficinas e cuja participação política se desdobrou em grandes mobilizações, particularmente as greves de 1948 e 1952.

AE É possível estabelecer diferenças administrativas na Rede Mineira de Viação e, ao mesmo tempo, interligá-las aos poderes públicos?

ACNM Sim, no caso na Rede Mineira, podemos perceber claramente uma mudança de rumos quando a administração passou das mãos de Demerval Pimenta, que administrou a RMV durante o governo de Benedito Valadares, ou seja, durante o governo Vargas, para as suas sucedâneas, já durante o governo de Milton Campos e JK.

AE No que se refere ao transporte ferroviário, o que se pode destacar na relação entre políticas públicas e direito dos trabalhadores?

ACNM Desde sua construção até a atualidade, a história da ferrovia brasileira foi marcada por idas e vindas entre o público e o privado. Começa com a iniciativa de capitais privados, mas acaba por ser encampada pela União, que melhorava as condições de trabalho, melhorava os salários, dentre outras questões, mas, em seguida, ela era novamente desestatizada, ou passava novamente para as mãos do capital privado, algumas vezes, para empresas multinacionais. Sendo assim, durante os governos cujas políticas priorizaram o bem-estar social e a inclusão dos trabalhadores no jogo político, como no caso da Era Vargas, a relação era positiva. Porém, no caso em que os governos eram liberais ou, para falar mais recentemente, neoliberais, essa relação não se deu de forma tranquila. Pelo contrário. Ocorreram várias manifestações que demonstram o quanto os direitos dos trabalhadores foram atingidos pela própria política de privatização/desestatização, quando muitos ferroviários perderam seus empregos e/ou foram “terceirizados”, passando a ganhar menos e sem direitos trabalhistas, pois geralmente passaram a prestar serviços como autônomos, sem vínculos empregatícios formais.

AE Quais foram as principais estratégias adotadas pelos ferroviários para lutarem por seus direitos?

ACNM As greves.

AE Em que conjuntura político-econômica ocorreu a decisão de desativar o transporte ferroviário de passageiros em Minas?

ACNM O processo teve início quando da implantação da indústria automobilística, como já é corrente no senso comum. Principalmente após a criação da Comissão Mista Brasil-Estados Unidos, que procurou mapear os chamados “ramais antieconômicos”. Além disso, ao invés das rodovias tornarem-se vias complementares ao sistema de transporte ferroviário, elas foram construídas, em sua maioria, paralelamente às vias férreas, diferente do ocorrido nas principais potências mundiais.

AE Quais foram as principais implicações socioeconômicas do desmonte da malha ferroviária mineira?

ACNM Talvez a principal... e aí já não é minha área de conhecimento, já que não sou economista... tenha sido o encarecimento do sistema de transporte público. Principalmente quando pensamos a extinção dos trens de passageiros e/ou na transformação desse patrimônio em atrativo turístico e não transporte de trabalhadores. Já que o trem turístico é muito mais caro do que costumava ser uma viagem de trem antigamente.

AE Em sua opinião, qual é o significado de registrar a memória da ferrovia e dos ferroviários em Minas?

ACNM É importante o registro da memória e do patrimônio não só das ferrovias e dos ferroviários de Minas, mas de todos os ferroviários do Brasil, para que, aprendendo com os erros do passado e com as lutas desses trabalhadores por direitos, tenhamos condições de reconstruir nossa malha ferroviária e resistir ao processo de extinção de uma das categorias mais combativas da história social do trabalho no Brasil. A grande imagem que nos vem à mente ou a palavra que volta e meia surge na fala de um mineiro é o trem. Signo. Identidade. Sempre quando penso em Minas, me vem logo a imagem de uma Maria Fumaça passando sobre uma montanha... Não podemos esquecer nossas raízes... É através da preservação dessa memória que poderemos reconstruir um país que volte a ter trens cada vez mais ágeis, não só para transportar nossas riquezas até os portos, mas também para fazer nossas deliciosas viagens por tão vasto país, preservando, se possível, nossa soberania enquanto nação cada vez mais desenvolvida e capaz de gerar e redistribuir riquezas, minimizando os terríveis efeitos da desigualdade social que é uma das mais terríveis marcas de nossa condição de ex-colonizados.■

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Ferrovia, Sociedade e Cultura: 1850-1930

Entrevista com Pablo Luiz de Oliveira Lima


Argvmentvm Editora Por que a escolha da ferrovia como tema central deste livro?

Pablo Luiz de Oliveira Lima A história ferroviária é um tema de interesse para mim por motivos pessoais e acadêmicos. Pessoais, porque sou de uma pequena cidade que veio a existir devido à construção da estação de Urubu, na Estrada de Ferro Goiás, em 1913. Com a falência desta empresa ferroviária, em 1920, ela foi leiloada e adquirida pela Estrada de Ferro Oeste de Minas, empresa estatal. Neste contexto, a estação de Urubu recebeu um novo e mais poético nome: Campos Altos. Em torno da estação, cresceu um povoado com a migração de habitantes das regiões rurais mais próximas, como meus avós, e em 1944 foi criado o município. Ainda hoje, a mesma ferrovia atravessa a cidade, travessia que completará 100 anos em breve. No entanto, a atual empresa concessionária não transporta passageiros, situação que vem desde o início dos anos 1980.

O interesse acadêmico surgiu durante o curso de graduação em história, pois percebi a pequena produção de pesquisa histórica sobre o assunto em Minas Gerais. Assim, fiz meu mestrado sobre o tema da história ferroviária no Programa de Pós-Graduação em História da UFMG, entre 2001 e 2003. Meu livro é uma versão levemente modificada da dissertação.

AE O senso comum, geralmente, associa o termo ferrovia a aspectos econômicos; no entanto, sua abordagem privilegia sociedade e cultura. Quais são as implicações desse tipo de análise?

PLOL A economia não está dissociada da sociedade e da cultura. Talvez um dos principais problemas da ciência econômica seja a negligência em relação a questões culturais e sociais que são afetadas ou influenciadas pela economia. Da mesma maneira, os estudos sobre fenômenos culturais e sociais não podem deixar de considerar as dimensões econômicas da realidade. Acredito que seja hora de os historiadores que atuam no campo da história cultural e social, assim como de os economistas que se interessam pela cultura, propor o conceito de “cultura econômica”, no mesmo sentido em que os historiadores da política trabalham com o conceito de “culturas políticas”. A cultura econômica é o conjunto de valores culturais que sustentam e justificam as práticas econômicas. No século XIX, havia uma cultura econômica que acreditava na industrialização da produção e circulação de mercadorias como o caminho inevitável para se alcançar o desenvolvimento. Era uma cultura que se guiava pelo sentimento evolucionista, que na linguagem econômica se traduzia em uma tensão entre o atraso e o progresso. Até o século XVIII não havia isto. O Brasil só ficou “atrasado” após a Revolução Industrial, quando passou a ser comparado com as nações industrializadas da época. E nossos governantes, desde então, buscam a “ordem e progresso”.

AE Quais foram suas fontes de pesquisa?

PLOL Para compreender o ambiente cultural do século XIX pesquisei em obras de memória de estrangeiros e brasileiros que deixaram registros sobre os transportes no Brasil, antes e depois da ferrovia. Para acompanhar os debates entre as autoridades políticas, analisei a memória oficial da província e do estado de Minas Gerais contida nos discursos dos chefes do executivo ao poder legislativo. E, para alcançar a dimensão do trabalho, busquei fontes diversas que representam os trabalhadores em seu dia a dia, como matérias de jornais da época, fotografias, relatórios das empresas e depoimentos de ex-ferroviários entrevistados durante o processo de pesquisa.

AE É possível delinear os períodos de “início, auge e declínio” das ferrovias no Brasil?

PLOL Sim. Entre 1835 e 1854, foram realizados os primeiros projetos e aprovadas as primeiras leis sobre ferrovias no Brasil. Mas a primeira empresa foi inaugurada pelo Barão de Mauá em 1854. Desse ano até 1930, o Brasil viveu o período de construção da maior parte da nossa malha ferroviária dentro de uma cultura liberal, o que significa que não houve um planejamento eficiente, levando muitas empresas à falência e à estatização. Com o governo Vargas, a partir de 1930, a malha ferroviária foi estatizada e centralizada em redes ferroviárias estaduais. O período entre os anos 1930 e 1960 marcou o auge do transporte ferroviário no Brasil. Nesse período, a ferrovia era o principal meio de transporte de pessoas e mercadorias. Em 1958, no governo de Juscelino Kubitscheck, foi criada a Rede Ferroviária Federal S.A., centralizando toda a malha nacional. Neste momento a malha nacional contava com cerca de 38 mil quilômetros de linhas férreas. Mas, após o Golpe Militar de 1964, que também foi apoiado por setores civis da sociedade, o transporte ferroviário foi colocado em segundo plano em relação ao transporte rodoviário. Durante a ditadura militar, nossa malha ferroviária foi abandonada ao ponto de retroceder à extensão da década de 1920 em 1983, ou seja, a cerca de 25 mil quilômetros de extensão. Em 1996 o setor ferroviário foi privatizado, voltando à era liberal. A este retorno ao liberalismo e à ausência de planejamento estatal denominamos neoliberalismo. Hoje estamos vivendo um momento de estagnação, o que é melhor que a retração da ditadura militar, mas sem avanços significativos e ainda sem o retorno do transporte de passageiros. Considero absurdo o fato de os cidadãos de hoje não poderem optar pela ferrovia para viajarem entre as cidades do país, estando limitados às rodovias ou ao transporte aéreo. Que capitalismo é este em que vivemos, que retira opções dos consumidores? Por causa desta inquietação decidi buscar conhecer melhor esta história, que é a história do capitalismo brasileiro, muito diferente do capitalismo da Europa ocidental e da América anglófona.

AE Quais foram as principais concepções acerca do papel da ferrovia no Brasil?

PLOL No século XIX havia um grande debate sobre o lugar da ferrovia no país. Havia aqueles que defendiam a ferrovia como um instrumento necessário ao progresso, mas isto não era unanimidade. Muitos duvidavam. Entre os que acreditavam na ferrovia, havia pelo menos dois grupos: um que defendia a ferrovia com o meio de ligação entre cidades já existentes e economicamente importantes, e outro que defendia a ferrovia como meio de integrar regiões sertanejas, desabitadas ou pouco habitadas e com pouca atividade econômica, fazendo com que se ligassem aos grandes centros urbanos e ativando, assim, as economias regionais.

AE A Estrada de Ferro Oeste de Minas e Estrada de Ferro Goiás modificaram as condições socioeconômicas das regiões em que foram instaladas?

PLOL Sim, para o bem e para o mal. Facilitaram e dinamizaram o transporte e a comunicação entre as regiões ligadas pelo trem. Contribuíram muito para o escoamento da produção cafeeira, estimulando o aumento da produção. Mas desagregaram os sistemas de transportes tradicionais, como o fluvial e as rotas de carros de bois, inundando os sertões com produtos industrializados e levando as pequenas indústrias, como a tecelagem tradicional, à falência. Criaram-se também cidades-fantasmas, cujas populações foram atraídas por estações ferroviárias, como foi o caso dos moradores de São Jerônimo dos Poções, que migraram quase totalmente para Campos Altos, a 18 quilômetros, porque ali passava a ferrovia.

AE O que podemos saber a respeito da ação dos ferroviários na implantação do desse sistema de transporte através das fontes que analisou?

PLOL O principal é que havia diversas categorias de ferroviários. As companhias ferroviárias inauguraram a hierarquia administrativa moderna no Brasil. Havia os engenheiros e diretores das empresas, graduados em engenharia no Brasil ou exterior, homens altamente qualificados e com ligações diretas com a elite econômica e política. Havia os funcionários mais qualificados, engenheiros práticos, agentes de estações, maquinistas, que figuraram entre os primeiros trabalhadores necessariamente livres em um país escravista. E havia todos os trabalhadores braçais, pedreiros, carregadores, entre os quais muitos eram escravos, e cuja história foi pouco registrada pelos documentos que encontrei.

AE Você pode comentar a seguinte passagem do livro: “... o trem de ferro, em sua passagem pelo Brasil, foi levado a atravessar a fronteira entre o essencial e o efêmero, passando de símbolo do futuro a sombra do passado.”?

PLOL Eu quis dizer que a ferrovia já foi o que havia de mais moderno no cenário econômico e cultural do país, mas hoje a situação é diferente. Grande parte do transporte de mercadorias in natura, como grãos e minerais, continua a ser realizado por ferrovias. Mas não há mais transporte de passageiros, com exceção de alguns trechos administrados pela Vale. O Brasil possui a 11a malha ferroviária mais extensa do mundo, mas ela é menor que as da Argentina, França, Alemanha, Reino Unido, Estados Unidos, etc. Hoje não há mais uma associação entre ferrovia e modernidade no imaginário social brasileiro, apesar de recorrentes discursos de políticos sobre a “volta da ferrovia” ou as vantagens do “trem bala”. A população ficou só com a memória e com um grande número de estações desativadas que assombram cidades por onde os trens um dia carregaram pessoas, sentimentos, amores, saudades...

AE Podemos falar em um “patrimônio ferroviário” no Brasil hoje? Como ele se apresenta?

PLOL Sim. Em meu livro fiz uma análise sobre a situação do patrimônio cultural ferroviário em Minas, que oscila entre casos de abandono e de preservação. O patrimônio ferroviário é composto por edificações (estações, casas de mestres de linha, edifícios administrativos, vilas operárias, oficinas, rotundas) e por um grande volume de documentos textuais, iconográficos e fotográficos, espalhados pelo país. Há ainda uma multidão de ex-ferroviários, muitos que foram aposentados compulsoriamente durante a privatização do setor em 1996, e que têm o principal patrimônio: a memória viva da era do trem.

AE A ferrovia pode ser uma alternativa para o sistema de transporte no Brasil hoje? Quais seriam as medidas necessárias para que ele se efetivasse?

PLOL Eu, não apenas como pesquisador, mas como cidadão, acredito que sim. E creio também que a principal medida seria fazer algo que nunca foi feito antes no Brasil, neste setor: consultar a sociedade sobre o que ela pensa em relação às ferrovias. Se a sociedade brasileira for consultada pelo Estado, poderemos saber o que ela pensa. E, se a maioria da população quiser a revitalização do transporte ferroviário e o retorno do transporte de passageiros, isto deveria ocorrer. Afinal de contas, não diz a Constituição de 1988 que todo o poder emana do povo? Então, por que não consultar a população sobre este e muitos outros assuntos que afetam a vida da sociedade como um todo? E por que não realizar obras que atendam diretamente às demandas reais da população? Talvez meu livro ajude um pouco a levantar estas questões sobre a cultura econômica do nosso tempo presente.■

quinta-feira, 30 de julho de 2009

Guerreiro Ramos e o desenvolvimento nacional

Entrevista com Márcio Ferreira de Souza

Quem se interessa pelo pensamento de Guerreiro Ramos?

De um modo geral historiadores, administradores públicos e sociólogos. E todos aqueles interessados na temática do pensamento social no Brasil.

O conjunto da obra de Guerreiro Ramos tem como foco o debate em torno do desenvolvimento nacional Daí o interesse que desperta para os interessados na administração pública. Mas é interessante destacar o vinculo, nas suas produções iniciais, entre desenvolvimento e a questão racial. Por esta razão o movimento Negro contemporâneo continua prescindindo da leitura de Guerreiro Ramos para nortear suas reflexões e ações.

Quem foi Guerreiro Ramos?

Guerreiro Ramos é baiano de Santo Amaro da Purificação. De origem simples, menino prodígio, aos 14 anos dava aulas particulares. Fez curso de Ciências Socais e de Direito e foi um membro do ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros. Foi deputado Federal. Foi cassado durante o golpe militar e vai para o exílio, onde se dedica à vida acadêmica na Universidade Católica de Los Angeles (EUA).

E o livro Guerreiro Ramos e o desenvolvimento nacional?

Trata-se do resultado de uma pesquisa acadêmica, agora publicada em formato livro. O meu enfoque foi exatamente a problemática do desenvolvimento nacional na obra do Guerreiro Ramos. Ao longo da sua trajetória a forma como aborda a temática vai se alterando e modificando-se. Busquei acompanhar e analisar este processo.